* Folha- Jairo Marques
Quinze dias no mundo ideal
Liguei a TV logo cedinho e nela falava um jornalista de um dos veículos mais conceituados do planeta: "Eles, realmente, são estrelas do esporte. Possuem desempenhos
extraordinários e brilham naquilo que fazem".
Limpei a remela do olho e dei um tapinha na cara para ver se estava sonhando.
Não, ele estava mesmo se referindo a uma nadadora inglesa anã e a um corredor brasileiro que nem perna tem, ambos ganhadores de medalhas de ouro durante os Jogos
Paraolímpicos de Londres.
Mudei de canal e me deparei com um repórter que, provavelmente, nasceu premiado sem os dois braços por inteiro. Eram apenas cotocos. Articulado e bem-humorado, ao
estilo inglês, ele acompanhava a premiação de uns sujeitos capengas que estava sendo feita pela duquesa, que é pura perfeição de beleza, Kate Middleton.
Ao final da badalação, ele chamou a transmissão do estúdio. O apresentador era um lascado igual a mim, cadeirante, que entrevistava, sem constrangimento, um rapaz
com a expressão toda torta, para-atleta com paralisia cerebral que, embora falasse com dificuldade, pensava perfeitamente.
Pronto, comercial. O protagonista era um prejudicado das vistas; em outro, uma misturada de gente abatida pela guerra e uma mensagem: "orgulho de seus potenciais".
Eu não estava com febre, com certeza. Resolvi, então, ir dar uma volta, espairecer.
Peguei o elevador e as teclas estavam na minha altura e tinham sinalização em braile -assim, os cegos não ficam subindo e descendo sem saber para onde ir. Em todo
caso, havia também mensagem falada informando o andar.
Na rua, dezenas de pessoas da "minha espécie", com deficiência, iam de um lado para o outro com autonomia (e sem firmar na mão de "nossa senhora da bicicletinha",
com medo de cair) porque os passeios eram ótimos e havia rampas e facilidades arquitetônicas por todo canto. Andei de ônibus, de trem, de metrô, de táxi -a maioria
preparada para pessoas com deficiência -e tudo era passível de uso por alguém que leva quatro rodas junto.
Mecanismos para sanar diferenças sensoriais e ou físicas estavam em toda a parte.
Mas o teste de fogo para saber se eu realmente não estava tendo uma alucinação foi deparar-me com uns seres humanos desses normais, que andam, trepam em árvores
e balançam os quadris.
Recebi "good mornings", sorrisos, mas nenhum convite para ir a uma igreja me curar e muito menos tive de ouvir alguma ladainha de que sou um exemplo de vida simplesmente
por levar a vida.
Não senti direcionarem a mim nenhum disparo de piedade, de vontade de me mandar para a reciclagem de material fora do padrão.
Parece mesmo é que todos pensavam: "A alma humana é igual para todos".
Vivi 15 dias em um universo onde as diferenças pareciam não enquadrar as pessoas em escaninhos de incompetência ou de exclusão para qualquer demanda de estar vivo.
Volto ao Brasil, aquele país que me maltrata em cada esquina, que rasga meus direitos em cada canto, cheio de vontade de mostrar que não é ilusão ou delírio meu
que uma sociedade mais delicada e igualitária com sua diversidade é possível.
Quinze dias no mundo ideal
Liguei a TV logo cedinho e nela falava um jornalista de um dos veículos mais conceituados do planeta: "Eles, realmente, são estrelas do esporte. Possuem desempenhos
extraordinários e brilham naquilo que fazem".
Limpei a remela do olho e dei um tapinha na cara para ver se estava sonhando.
Não, ele estava mesmo se referindo a uma nadadora inglesa anã e a um corredor brasileiro que nem perna tem, ambos ganhadores de medalhas de ouro durante os Jogos
Paraolímpicos de Londres.
Mudei de canal e me deparei com um repórter que, provavelmente, nasceu premiado sem os dois braços por inteiro. Eram apenas cotocos. Articulado e bem-humorado, ao
estilo inglês, ele acompanhava a premiação de uns sujeitos capengas que estava sendo feita pela duquesa, que é pura perfeição de beleza, Kate Middleton.
Ao final da badalação, ele chamou a transmissão do estúdio. O apresentador era um lascado igual a mim, cadeirante, que entrevistava, sem constrangimento, um rapaz
com a expressão toda torta, para-atleta com paralisia cerebral que, embora falasse com dificuldade, pensava perfeitamente.
Pronto, comercial. O protagonista era um prejudicado das vistas; em outro, uma misturada de gente abatida pela guerra e uma mensagem: "orgulho de seus potenciais".
Eu não estava com febre, com certeza. Resolvi, então, ir dar uma volta, espairecer.
Peguei o elevador e as teclas estavam na minha altura e tinham sinalização em braile -assim, os cegos não ficam subindo e descendo sem saber para onde ir. Em todo
caso, havia também mensagem falada informando o andar.
Na rua, dezenas de pessoas da "minha espécie", com deficiência, iam de um lado para o outro com autonomia (e sem firmar na mão de "nossa senhora da bicicletinha",
com medo de cair) porque os passeios eram ótimos e havia rampas e facilidades arquitetônicas por todo canto. Andei de ônibus, de trem, de metrô, de táxi -a maioria
preparada para pessoas com deficiência -e tudo era passível de uso por alguém que leva quatro rodas junto.
Mecanismos para sanar diferenças sensoriais e ou físicas estavam em toda a parte.
Mas o teste de fogo para saber se eu realmente não estava tendo uma alucinação foi deparar-me com uns seres humanos desses normais, que andam, trepam em árvores
e balançam os quadris.
Recebi "good mornings", sorrisos, mas nenhum convite para ir a uma igreja me curar e muito menos tive de ouvir alguma ladainha de que sou um exemplo de vida simplesmente
por levar a vida.
Não senti direcionarem a mim nenhum disparo de piedade, de vontade de me mandar para a reciclagem de material fora do padrão.
Parece mesmo é que todos pensavam: "A alma humana é igual para todos".
Vivi 15 dias em um universo onde as diferenças pareciam não enquadrar as pessoas em escaninhos de incompetência ou de exclusão para qualquer demanda de estar vivo.
Volto ao Brasil, aquele país que me maltrata em cada esquina, que rasga meus direitos em cada canto, cheio de vontade de mostrar que não é ilusão ou delírio meu
que uma sociedade mais delicada e igualitária com sua diversidade é possível.
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